sexta-feira, 30 de março de 2007

Coleção Carlos Estevão -Museu do Estado de Pernambuco

A Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira do
Museu do Estado de Pernambuco
por
Renato Athias

A “Coleção Etnográfica Carlos Estevão” constitui-se em um valioso acervo de mais de 3.000 objetos adquiridos entre os anos de 1908 a 1946 quando o pernambucano, advogado, poeta e naturalista. Carlos Estevão de Oliveira trabalhou na região Amazônica ocupando importantes cargos no Estado do Pará como promotor em Alenquer, funcionário público em Belém, e por fim, Diretor do Museu Paraense Emílio Göeldi, cargo que exerceu até sua morte em junho de 1946. É autor de obras literárias e científicas foi membro do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, dos Institutos Históricos e Geográficos do Pará e Ceará e da Academia Paraense de Letras.
Esta coleção que compreende um conjunto de peças provenientes de 54 povos indígenas mostrando uma variedade de objetos que faziam e fazem parte da vida cotidiana desses povos. As exposições permanentes e as diversas mostras itinerantes organizadas pelo Museu do Estado de Pernambuco indicam quão importantes é essa coleção para se visualizar as riquezas, a vida, os costumes e a cultura dos povos indígenas do Brasil.
Durante os anos de 1930 a 1946, em que Carlos Estevão de Oliveria, foi o diretor do Museu Paraense Emílio Göeldi, teve a oportunidade de encontrar-se com diversos pesquisadores e etnógrafos que por ali passaram. Neste período ele manteve uma relação privilegiada com Curt Nimuendajú, antropólogo e pesquisador do Serviço de Proteção dos Índios (SPI) com o qual teve oportunidade de escutar, e, sobretudo, ler os seus principais relatos etnográficos, e o incentiva a elaborar um mapa etnolingüístico sobre os povos indígenas do Brasil, cujo original, confeccionado em papel canson, naquim e aquarela, encontra-se entre o acervo da coleção. Atualmente este mapa é referência para todos os que estudam os povos indígenas do Brasil.
O acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão possui cerca de 546 peças de diversos grupos indígenas relacionados ao vestuário e adornos corporais. Dentre estas se encontram 111 exemplares pertencentes ao povo Kaapor, do Maranhão, onde se encontram os colares, as pulseiras, os diademas, os cintos, os brincos e as acangataras, fabricados com os mais diversos materiais, como dentes de animais, miçangas e penas de pássaros. Do povo Shipibo do Peru, a coleção tem as mais lindas peças de vestuários confeccionados em miçangas. Encontra-se ainda uma peça de vestuário feminino, proveniente do Rio Nhamundá, possivelmente do povo Hixkariana, confeccionada em fio de algodão tecida em miçangas, sementes e plumas de cerca de 25cm de comprimento e 39cm de largura. Entre os colares da coleção, vale destacar, aqueles provindos do povo Tükuna (da fronteira do Estado do Amazonas com o Peru) não só pela sua importância visual, mas pelos detalhes antropomorfos e zoomorfos esculpidos em caroço de tucumã que estes oferecem dos animais do cotidiano desse povo. Os adornos corporais da coleção contêm um significativo valor religioso, como por exemplo, as máscaras das danças da moça-nova entre os Tükuna. As máscaras cerimoniais, fabricadas com a entrecasca do tururi e decoradas com desenhos coloridos, estão associadas também aos objetos de produção de música, como os maracás, alguns deles, com desenhos em relevo, tambores, bastões-de-ritmos e cerimoniais talhados em diversos tipos de madeira, mostrando as pinturas geométricas, figuras e desenhos com inspiração mitológica. Ainda, entre os adornos e peças de vestuário da coleção existem três curiosos estojos penianos feitos com folha de palmeira, possivelmente utilizados pelos Munduruku do Pará. Merece também destaque, um conjunto de pentes fabricados com dentes e espinhos de árvores, e adornados com penas pertencentes aos índios Urubu-Kaapor. Encontram-se ainda, na coleção, os carimbos com desenhos geométricos esculpidos em madeira utilizados para a realização de pinturas corporais durante os festivais provenientes dos Palikur do Amapá.
A coleção contém também uma quantidade significativa de objetos da maloca, da casa e de uso doméstico retratando o dia-a-dia dos povos indígenas. Entre esses se destacam aqueles fabricados com diversos tipos de cipós e palhas (buriti, arumã, babaçu, enviras), com uma variedade de trançados, fornecendo uma idéia de praticidade e da destreza dos povos indígenas em confeccionar objetos funcionais e bonitos. As peças de cestaria podem ser agrupadas em três tipos: a) aqueles utilizados para o transporte da mandioca, de uso cotidiano, esta sendo grande porte e fabricados com cipó aspiralado; b) os pequenos cestos de palhas de arumã com tampas possuindo desenhos e certamente utilizados para transporte de pequenos objetos, e por fim, c) os cestos para serem utilizados em grandes viagens no interior da floresta. Entre esses se encontra um lindo cesto medindo 43cm por 41cm trançado em sarja iniciado pelo fundo e preso às varetas flexíveis.
Entre os objetos de uso doméstico encontram-se as peças de cerâmicas decoradas, fabricadas com diferentes técnicas de cozimento em argila, destacando-se entre estas, as panelas e tigelas fabricadas pelos índios Apalaí do Pará com 12cm de altura e 24cm de largura com um diâmetro de 9cm, com desenhos tanto na parte interna como externa. Entre os objetos de cerâmicas encontram-se as figurinhas animais, certamente utilizados em brincadeiras de crianças que Carlos Estevão adquiriu em Porto Real do Colégio possivelmente dos índios Kariri-Xocó.
As armas e os instrumentos de caça e pescas representam uma parte valiosa da coleção cujas peças somam 844 exemplares provenientes de diversos povos da Amazônia. O conjunto de flechas mostra a variedade de fabricação e a criatividade que pode ser visualizada nas pontas. Encontra-se na coleção uma machadinha de pedra totalmente completa e outros exemplares sem o cabo, todas elas de grupos indígenas do Pará. Os tacapes Kaiapó adornados com palhas de arumã representam uma singularidade uma vez que hoje não são mais fabricados desta forma. Ainda na coleção encontram-se as zarabatanas e estojos com setas e até mesmo uma pequena jarra contendo curare utilizado para passar nas pontas de flechas e setas de zarabatana.
Os instrumentos musicais e rituais da coleção possibilitam uma visualização da diversidade de materiais usados na fabricação (taquara, ossos e as cabaças) e os diversos instrumentos recorrentes nos mais diferentes grupos indígenas. Os maracás são um bom exemplo, pois existe uma grande variedade, tanto na forma como nos diversos conteúdos das cabaças, que emitem os sons. Entre os instrumentos de sopro encontram-se as buzinas, apitos e os diversos tipos de flautas, destacando-se as flautas de pan e aquelas fabricadas com osso de animais, tanto com furos como aquelas cujos sons são obtidos pela grossura e comprimento dos tubos. Especificamente encontram-se as flautas Gorotire (Kaiapó). A coleção mostra algumas tornozeleiras feitas de sementes que emitem sons e acompanhadas pelos bastões-de-ritmo. Um antigo tambor Tükuna utilizado durante a festa da moça-nova encontra-se entre os instrumentos musicais da coleção.
Encontram-se objeto, de uso ritualístico em um número significativo, como os cachimbos provenientes de diversos povos indígenas, entre os quais, um conjunto de cinco cachimbos (campiô) trazidos de Brejos dos Padres (Pernambuco) onde estão localizados os índios Pankararu. Ainda desse povo encontra-se um bastão utilizado nos rituais. Uma peça singular que merece ser destacado e que parece ser um o bastão ritual com desenhos em relevo da madeira mostrando o processo de metamorfose de um tipo de besouro.
Entre esse acervo encontra-se um número significativo de fotografias que fazem parte dessa coleção, que seguramente, foram oferecidas a Carlos Estevão quando ainda era o Diretor do Museu Paraense Emílio Goëldi. Muitas dessas fotografias são de autoria desconhecida. Porém grande parte desse conjunto fotográfico pode encontrar imagens realizadas pelo próprio Curt Nimuendajú como as fotografias dos índios do Rio Negro, dos Ramkokamekrá (Canela), Kaiapó, Palikur, Parintintim, todas elas sem os respectivos negativos e algumas em processo de deterioração. Outras fotografias nesse acervo são do próprio Carlos Estevão, como as fotografias do Fulni-ô, Pankararu, Tuxá, Tremembé. Esse rico material imagético permite mostrar a situação desses índios no início dos anos quarenta permitindo assim uma comparação importante com a atualidade.
Na estreita relação que Carlos Estevão manteve com Curt Nuimuendajú, já descrito nas correspondências, publicadas em 2000, por Theckla Hartmann, com o título de: “Cartas Do Sertão”, encontram-se também entre os objetos desse acervo algumas dos originais dessas cartas, bem como, importantes documentos escritos por Curt Nimuendajú, entre os quais toda a documentação de um  curso de Etnologia que Nimuendajú mantinha no Museu Goëldi. Além desse material documental a coleção possui uma quantidade significativa de objetos arqueológicos principalmente de acultura de Santarém e do Marajó, que merece uma apresentação a parte.
A Coleção Etnográfica Carlos Estevão veio de Belém para o Museu do Estado de Pernambuco em 1947, e desde estão tem sido continuamente exposta no próprio Museu como também tem participado de exposições itinerantes, onde o publico tendo tido acesso às informações e conhecimentos sobre os povos indígenas do Brasil. Carlos Estevão durante suas visitas em Pernambuco possibilitou que os Pankararu pudessem ser reconhecidos oficialmente através de suas observações e estudos, quando de sua estadia no Brejo dos Padres, município de Tacaratu. As principais observações etnográficas encontram-se nos seguintes trabalhos: “Ossuário da Gruta do Padre”; “Carnijós de Águas Belas” e “Remanescentes Indígenas do Nordeste”.