A Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira do
Museu do Estado de Pernambuco
por
Renato Athias
A “Coleção Etnográfica Carlos Estevão” constitui-se em
um valioso acervo de mais de 3.000 objetos adquiridos entre os anos
de 1908 a 1946 quando o pernambucano, advogado, poeta e naturalista.
Carlos Estevão de Oliveira trabalhou na região Amazônica ocupando importantes
cargos no Estado do Pará como promotor em Alenquer, funcionário público em
Belém, e por fim, Diretor do Museu Paraense Emílio Göeldi, cargo que exerceu
até sua morte em junho de 1946. É autor de obras literárias e científicas foi
membro do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, dos Institutos
Históricos e Geográficos do Pará e Ceará e da Academia Paraense de Letras.
Esta coleção que compreende um conjunto de peças provenientes
de 54 povos indígenas mostrando uma variedade de objetos que faziam e fazem
parte da vida cotidiana desses povos. As exposições permanentes e as diversas
mostras itinerantes organizadas pelo Museu do Estado de Pernambuco indicam quão
importantes é essa coleção para se visualizar as riquezas, a vida, os costumes
e a cultura dos povos indígenas do Brasil.
Durante os anos de 1930 a 1946, em que
Carlos Estevão de Oliveria, foi o diretor do Museu Paraense Emílio Göeldi,
teve a oportunidade de encontrar-se com diversos pesquisadores e etnógrafos que
por ali passaram. Neste período ele manteve uma relação privilegiada com Curt
Nimuendajú, antropólogo e pesquisador do Serviço de Proteção dos Índios (SPI) com
o qual teve oportunidade de escutar, e, sobretudo, ler os seus principais
relatos etnográficos, e o incentiva a elaborar um mapa etnolingüístico sobre os
povos indígenas do Brasil, cujo original, confeccionado em papel canson, naquim
e aquarela, encontra-se entre o acervo da coleção. Atualmente este mapa é
referência para todos os que estudam os povos indígenas do Brasil.
O acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão possui
cerca de 546 peças de diversos grupos indígenas relacionados ao vestuário e adornos
corporais. Dentre estas se encontram 111 exemplares pertencentes ao povo Kaapor,
do Maranhão, onde se encontram os colares, as pulseiras, os diademas, os
cintos, os brincos e as acangataras, fabricados com os mais diversos materiais,
como dentes de animais, miçangas e penas de pássaros. Do povo Shipibo do Peru,
a coleção tem as mais lindas peças de vestuários confeccionados em
miçangas. Encontra-se ainda uma peça de vestuário feminino, proveniente do
Rio Nhamundá, possivelmente do povo Hixkariana, confeccionada em fio de algodão
tecida em miçangas, sementes e plumas de cerca de 25cm de comprimento e 39cm de
largura. Entre os colares da coleção, vale destacar, aqueles provindos do povo
Tükuna (da fronteira do Estado do Amazonas com o Peru) não só pela sua
importância visual, mas pelos detalhes antropomorfos e zoomorfos esculpidos em
caroço de tucumã que estes oferecem dos animais do cotidiano desse povo. Os
adornos corporais da coleção contêm um significativo valor religioso, como por
exemplo, as máscaras das danças da moça-nova entre os Tükuna. As máscaras
cerimoniais, fabricadas com a entrecasca do tururi e decoradas com desenhos
coloridos, estão associadas também aos objetos de produção de música, como os
maracás, alguns deles, com desenhos em relevo, tambores, bastões-de-ritmos e
cerimoniais talhados em diversos tipos de madeira, mostrando as pinturas
geométricas, figuras e desenhos com inspiração mitológica. Ainda, entre os
adornos e peças de vestuário da coleção existem três curiosos estojos penianos feitos
com folha de palmeira, possivelmente utilizados pelos Munduruku do Pará. Merece
também destaque, um conjunto de pentes fabricados com dentes e espinhos de
árvores, e adornados com penas pertencentes aos índios Urubu-Kaapor.
Encontram-se ainda, na coleção, os carimbos com desenhos geométricos esculpidos
em madeira utilizados para a realização de pinturas corporais durante os
festivais provenientes dos Palikur do Amapá.
A coleção contém também uma quantidade significativa
de objetos da maloca, da casa e de uso doméstico retratando o dia-a-dia dos
povos indígenas. Entre esses se destacam aqueles fabricados com diversos tipos
de cipós e palhas (buriti, arumã, babaçu, enviras), com uma variedade de
trançados, fornecendo uma idéia de praticidade e da destreza dos povos
indígenas em confeccionar objetos funcionais e bonitos. As peças de cestaria
podem ser agrupadas em três tipos: a) aqueles utilizados para o transporte da
mandioca, de uso cotidiano, esta sendo grande porte e fabricados com cipó
aspiralado; b) os pequenos cestos de palhas de arumã com tampas possuindo
desenhos e certamente utilizados para transporte de pequenos objetos, e por
fim, c) os cestos para serem utilizados em grandes viagens no interior da
floresta. Entre esses se encontra um lindo cesto medindo 43cm por 41cm trançado
em sarja iniciado pelo fundo e preso às varetas flexíveis.
Entre os objetos de uso doméstico encontram-se as
peças de cerâmicas decoradas, fabricadas com diferentes técnicas de cozimento
em argila, destacando-se entre estas, as panelas e tigelas fabricadas pelos
índios Apalaí do Pará com 12cm de altura e 24cm de largura com um diâmetro de
9cm, com desenhos tanto na parte interna como externa. Entre os objetos de
cerâmicas encontram-se as figurinhas animais, certamente utilizados em
brincadeiras de crianças que Carlos Estevão adquiriu em Porto Real do
Colégio possivelmente dos índios Kariri-Xocó.
As armas e os instrumentos de caça e pescas
representam uma parte valiosa da coleção cujas peças somam 844 exemplares
provenientes de diversos povos da Amazônia. O conjunto de flechas mostra a
variedade de fabricação e a criatividade que pode ser visualizada nas pontas.
Encontra-se na coleção uma machadinha de pedra totalmente completa e outros
exemplares sem o cabo, todas elas de grupos indígenas do Pará. Os tacapes
Kaiapó adornados com palhas de arumã representam uma singularidade uma vez que
hoje não são mais fabricados desta forma. Ainda na coleção encontram-se as
zarabatanas e estojos com setas e até mesmo uma pequena jarra contendo curare
utilizado para passar nas pontas de flechas e setas de zarabatana.
Os instrumentos musicais e rituais da coleção
possibilitam uma visualização da diversidade de materiais usados na fabricação
(taquara, ossos e as cabaças) e os diversos instrumentos recorrentes nos mais
diferentes grupos indígenas. Os maracás são um bom exemplo, pois existe uma
grande variedade, tanto na forma como nos diversos conteúdos das cabaças, que
emitem os sons. Entre os instrumentos de sopro encontram-se as buzinas, apitos
e os diversos tipos de flautas, destacando-se as flautas de pan e aquelas
fabricadas com osso de animais, tanto com furos como aquelas cujos sons são
obtidos pela grossura e comprimento dos tubos. Especificamente encontram-se as
flautas Gorotire (Kaiapó). A coleção mostra algumas tornozeleiras feitas de
sementes que emitem sons e acompanhadas pelos bastões-de-ritmo. Um antigo
tambor Tükuna utilizado durante a festa da moça-nova encontra-se entre os
instrumentos musicais da coleção.
Encontram-se objeto, de uso ritualístico em um número
significativo, como os cachimbos provenientes de diversos povos indígenas,
entre os quais, um conjunto de cinco cachimbos (campiô) trazidos de Brejos dos
Padres (Pernambuco) onde estão localizados os índios Pankararu. Ainda desse
povo encontra-se um bastão utilizado nos rituais. Uma peça singular que merece
ser destacado e que parece ser um o bastão ritual com desenhos em relevo da
madeira mostrando o processo de metamorfose de um tipo de besouro.
Entre esse acervo encontra-se um número significativo
de fotografias que fazem parte dessa coleção, que seguramente, foram oferecidas
a Carlos Estevão quando ainda era o Diretor do Museu Paraense Emílio Goëldi.
Muitas dessas fotografias são de autoria desconhecida. Porém grande parte desse
conjunto fotográfico pode encontrar imagens realizadas pelo próprio Curt
Nimuendajú como as fotografias dos índios do Rio Negro, dos Ramkokamekrá
(Canela), Kaiapó, Palikur, Parintintim, todas elas sem os respectivos negativos
e algumas em processo de deterioração. Outras fotografias nesse acervo são do
próprio Carlos Estevão, como as fotografias do Fulni-ô, Pankararu, Tuxá,
Tremembé. Esse rico material imagético permite mostrar a situação desses índios
no início dos anos quarenta permitindo assim uma comparação importante com a
atualidade.
Na estreita relação que Carlos Estevão manteve com Curt
Nuimuendajú, já descrito nas correspondências, publicadas em 2000, por Theckla
Hartmann, com o título de: “Cartas Do Sertão”, encontram-se também entre os
objetos desse acervo algumas dos originais dessas cartas, bem como, importantes
documentos escritos por Curt Nimuendajú, entre os quais toda a documentação de
um curso de Etnologia que Nimuendajú
mantinha no Museu Goëldi. Além desse material documental a coleção possui uma
quantidade significativa de objetos arqueológicos principalmente de acultura de
Santarém e do Marajó, que merece uma apresentação a parte.
A Coleção Etnográfica Carlos Estevão veio de Belém
para o Museu do Estado de Pernambuco em 1947, e desde estão tem sido
continuamente exposta no próprio Museu como também tem participado de
exposições itinerantes, onde o publico tendo tido acesso às informações e
conhecimentos sobre os povos indígenas do Brasil. Carlos Estevão durante suas
visitas em Pernambuco possibilitou que os Pankararu pudessem ser reconhecidos
oficialmente através de suas observações e estudos, quando de sua estadia no
Brejo dos Padres, município de Tacaratu. As principais observações etnográficas
encontram-se nos seguintes trabalhos: “Ossuário da Gruta do Padre”; “Carnijós
de Águas Belas” e “Remanescentes Indígenas do Nordeste”.