Os Fotógrafos do Tuxaua Mandu
Por Renato Athias
Tuxaua Mandu retratado por Koch-Grünberg, 1903
Por Renato Athias
Em 2015 quando eu estava trabalhando no acervo fotográfico da Província Franciscana de Santo Antônio, em Recife, com as imagens dos Tiriyó eu encontrei um retrato do tuxaua Mandu entre as demais fotografias desse rico acervo. Desde então eu fiquei bastante intrigado. Como essa fotografia apareceu nesse acervo? Eu não tive dúvida nenhuma que aquele retrato era realmente do tuxaua Mandu que estava nas minhas mãos, pois já conhecia fotografia semelhante no acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco.
Tuxaua Mandu retratado por Koch-Grünberg, 1903
O etnógrafo Theodore Koch-Grünberg (1) foi o primeiro a fotografar o tuxaua Mandu. Ele a publicou em seu livro intitulado: "Zwei Jahre unter den Indianern: Reisen in Nordwest-Brasilien 1903-1905", em 1909. Ele o chamou de "Chefe dos Seuci [Waliperi] do Rio Ayari". Ou seja, o primeiro na hierarquia dos Waliperi. O encontro deles se deu pela primeira vez em 1903, na maloca da aldeia do Cururu-Cuára (Cururu-Poço), também conhecido como Dorataunumana no Rio Ayari. Eu consultei os professores Artur Waliperi Baniwa, Monica Apolinário e Dan Baniwa sobre o lugar desta antiga maloca. Eles me informaram que não mora mais ninguém nesse famoso lugar, super descrito com muitos detalhes etnográficos por Koch-Grünberg, eles também, me disseram que esse Cururu Cuára é o nome de uma lagoa que fica bem próximo de um povoado atualmente chamado de Canadá.
Coloco abaixo o perfil do tuxaua Mandu escrito por Koch-Grünberg em 1903:
Mandú me explicou com palavras algo diferentes. Quando filho, mas velho morreu depois de algum tempo, embora obrigue um filho adulto, quem se tornará tuxaua faith o Mandú. Se o Mandú morrer, seus irmãos sucederão no cargo, sempre de acordo com sua idade. Somente depois da morte do irmão mais novo, o filho do irmão, mas velho pode tornar-se chefe.A autoridade de um tal chefe é pouca e estava geralmente limitada a na comunidade da aldeia, a qual ele pertence e presidia como o ancião. Sua posição principalmente representativa, ele recebe os estranhos e conduz uma negociação com eles, como representante da aldeia inteira, transmitindo os desejos dela. Em todas as consultas, cuja as reuniões ele pode convocar, ele as presid. Nas ocasiões que atingem toda uma aldeia, caça comunitária, pescaria, construção da maloca, hostilidades com outras tribos que agora já não mais acontecem, ele pode convocar sua gente e indicar a cada um o seu lugar. De vez em quando, ele manda consertar a casa, limpar a praça e reparar os caminhos. Nas festas, ele preside uma dança, como puxador da fila dos dançantes e mestre de cerimônias. Se ele se afastar da aldeia por algum tempo, ele transmitido ao seu irmão mas velho a representação do seu cargo, fazendo um prolongado discurso de despedida, frequentemente interrompido pelas cerimônias de lamentação, como eu frequentemente e pude observar. Nas brigas entre os moradores da aldeia, que são raríssimas, o tuxaua vai apaziguando, admoestando com palavras “Isto não é está bem. Deixem de barulho! ”Ele não pode castigar.A senhoria sobre outras tribos Aiarý, Húheteni e Káua-tapuyo, hoje apenas de nome, mas em todas as aldeias que eu está com ele visitei mas tarde, ele sempre fé pagamento e respeitado como chefe . A gente poderia comparar este sistema com chefia e sua competência com o cargo de alcaide da aldeia alemã (Dorf schultze); o conselho comunitário daqui corresponde a sociedade dos homens casados de lá. (Techo do livro de Koch-Grünberg traduzido por Casimiro Beskta em 2005)
Maloca do tuxaua Mandu fotografada por Koch-Günberg em 1903 em Cururu-Cuára
Maloca por dentro na foto de Koch-Grünberg, em 1903
Koch-Grünberg deve ter passado muito tempo em Cururu-Cuára. O tuxaua explica para ele bem direitinho como eles vivem e o significado das coisas ao seu redor: plantas, uso das plantas, as festas, as máscaras, entre outras coisas. Tuxaua Mandu fala para Koch-Grünberg o simbolismo da Maloca na vida dos povos indígenas, parte fundamental até hoje na organização social e política de todos os povos indígenas dessa região. Nessa parte do texto Koch-Grünberg traduz a maneira de ser chefe, ou seja de como usar o poder entre os Seuci (Waliperi) do Rio Ayari.
Pelo meio-dia, chegou ou tuxaua Mandú; enfim um com que se pudesse falar razoavelmente. Ele era um homem nos melhores anos de sua idade, com rosto serial, inspirava confiança e era evidentemente muito inteligente (figura.29) .Seu português, embora não fosse excelente, era suficiente para se comunicar, junto com uma Língua Geral que ele dominava bem.Logo prometeu-me providenciar um bote maior e gente para nossa viagem e ajudar-me em tudo. Na sua juventude, Mandú tinha passado bastante tempo nos sítios dos brancos no rio Negro e estava bem consciente das suas melhores maneiras. Além disso, Antonio que tinha muito grande respeito para comigo, tinha me mudava como uma personalidade oficial muito alta, que viajava por ordem do governador de Manaós, “o primeiro tuxaua” (chefe supremo), de que a existência Mandú tinha alguma vaga intuição. Como Mandú mesmo orgulhosamente narrava, ele descendia de uma família antiquíssima de chefs e considerava chefe-mor de todos os moradores do Aiarý. Antigamente, seus antepassados tinham vindo do alto Içana para Aiarý e subjugado e assentado os Huhúteni, que antes inconstantes vaguearam pela selva. (Trecho do livro de Koch-Grünberg traduzido por Casemiro Beskta em 2005
Interessante que nessa parte do texto, Koch-Grünberg faz as suas comparações com as aldeias alemãs que ele conhecia muito bem. Na interpretação dele, relatadas em seu precioso livro eu percebo também o jeito de ser chefe entre os Hupd’äh, da região interfluvial do Rio Tiquié e Papuri (ATHIAS, 1995). Outros autores antes de Koch-Grünberg e muito antes de mim que passaram na região do Alto Rio Negro, como inglês Alfred Wallace (1853), o italiano Ermano de Stradelli (1890) também falam sobre o “jeito” de ser chefe, sobre autoridade e poder entre os povos indígenas dessa região.
Ettore Biocca (1965) relata em seu livro sobre a região, que também foi a procura do Tuxaua, pois queria conhecê-lo. Em 1943, ele viaja até a região, do Içana e Ayari, porém Tuxaua Mandu já havia falecido, e no seu livro reutliza as fotos de Koch-Grünberg e, em várias páginas, parafraseia os textos sobre o Tuxaua Mandu, que haviam sido escritos por Koch-Grünberg (1903).
O antropólogo Robin Wright (1982) que trabalha há muitos anos com os Hohodene também do Rio Ayari enfatiza como é importante a hierarquia entre os diversos clãs. Este aspecto da organização social talvez seja o que mais tenha sido transformado nessas últimas décadas. Escrevendo este texto sobre as fotografias do tuxaua Mandu, eu percebi que poderia, tendo em vista a quantidade de anos que venho acompanhando os povos indígenas dessa região, mostrar elementos sobre as transformações sociais ocorridas na organização social e política desses povos.
Capa do livro de Koch-Grünberg traduzido para o Português, por Casimiro Beskta em 2006,
quase cem anos depois da 1a. edição em Alemão.
Na descrição de Koch-Grünberg sobre tuxauas, chefes e pajés aparece também o pai do tuxaua Mandu, que também recebe um bonito perfil escrito e um retrato.
Pai do tuxaua Mandu fotografado por Koch-Grünberg
Curt Nimuendajú 24 anos mais tarde, procura o tuxaua Mandu em uma viagem que fez nessa região em 1927. Ele já conhecia a sua fama, pois tinha lido os textos de Koch-Grünberg. De um forma, eu diria, até insistente. Relendo o livro de Koch-Grünberg percebo que o tuxaua Mandu foi o seu principal interlocutor durante sua permanência no rio Ayari. Por muitos anos Curt Nimuendajú manteve um profícuo e profundo diálogo com Koch-Grünberg e sem dúvida sabia que iria encontrar o tuxaua Mandu durante sua viagem no Rio Ayari, pois Nimuendajú seguiu o mesmo roteiro de viagem que seu amigo Koch-Grünberg. Michael Kraus (2009) que conhece muito bem a troca de correspondências entre Koch-Grünberg e Curt Nimuendajú fala de uma “certa irrequietude” de Curt Nimuendajú e que muito provavelmente Koch-Grünberg compartilhava também. Vejam abaixo como Curt Nimuendajú retrata o tuxaua Mandu.
"[...] No dia seguinte encontramos outra maloca dos Cáua-Tapuya, na boca do Iuíra-Igarapé e poucos minutos mais acima uma terceira na boca do Murutinga-Igarapé. Todas as três juntas, porém não tem mais do que 25 habitantes e todas as três eram igualmente pobres e decadentes. Na maloca Murutinga, encontramos o pajé dos Hohódene de Taracuá, com 7 dos seus, em duas ubás que estavam voltando para a sua maloca. Este pajé tinha ao que parecia com mal resultado, tratado de um caso de mordedura de jararaca, perto de Cururú-Poço, aldeia dos Siucí-Tapuya. Não demorou muito que encontrássemos pescadores desta maloca, aonde chegamos ás duas e meia. Ela tem uma bonita posição, numa ponta de terra firme na margem direita do Ayari, defronte á boca de um lago. A única casa que forma o sítio era a maior que até então eu tinha visto no Içana e Ayari. Subi e entrei; num canto da maloca, atrás de um japá levantado, jazia na rede, o velho tuxaua Mandú, o amigo do finado Koch-Grünberg agora completamente paralitico, ao ponto de nem poder se sentar sem apoio e, além disto, atacado de malária. Dos seus três guapos filhos o mais moço não se afastava do seu lado, agindo conforme as resoluções do velho e sem dar uma palavra. Estranhamente contrastado a inteligência e a vivacidade daquele ancião com a sua extrema decadência física. Ele fala a língua portuguesa muito mal, melhor porém que qualquer índio do Içana ou Ayari. Solicitamente o ofereceu logo mantimentos, muito mais que eu podia comprar, mostrando muita pressa em estabelecer um comercio comigo. Qualquer permuta de gêneros dos habitantes da maloca ia por seu intermédio. Ele mesmo fazia os preços e recebia o pagamento. A sua decisão era aceitar condicionalmente. Estes negócios o cansavam visivelmente, e assim que se estabeleciam alguma pausa ele se deixava cair na rede e, encolhendo-se todo, fechava os olhos. Este decrepito velho foi o único verdadeiro chefe que encontrei entre os índios daquela região. Ele estava inteiramente de acordo que eu devia fotografá-lo fazendo-se carregar nas costas de sua mulher para fora da maloca onde o sentara num banquinho apoiado na sua lança. O número dos habitantes da maloca Cururú-Poço é 25; eles são Siucí-Tapuya" .
Tuxaua Mandu fotografado por Curt Nimuendajú em 1927
Quando eu estava organizando o livro "Reconhecimento dos Rios Içana, Ayari, Uaupés, Apontamentos Linguísticos e Fotografias de Curt Nimuendajú", por indicação de Denise Portugal, excelente conhecedora do acervo fotográfico do Museu do Índio do Rio de Janeiro, tomei conhecimento do conjunto de 48 fotografias de Philipp von Luetzelburg em um album de fotografias no Acervo do Museu do Índio, intitulado: "Im Stromgebiet des Rio Negro". Neste conjunto de fotografias, há uma fotografia do tuxaua Mandu que parece ser a mesma pessoa que está no acervo da Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco, cuja legenda escrita por Nimuendajú diz: tuxaua Mandu, Waliperi-Dakenay, Maloca Cururu, Rio Ayari. Esta legenda é diferente daquela que está no álbum de Von Luetzelburg (veja abaixo). Tenho certeza de que se trata da mesma pessoa, mas retratada por fotógrafos diferentes.
Tuxaua Mandu fotografado por Philipp von Luetzelburg em 1928
A indicação do lugar está errado, não é Cururu-Cachoeira e sim Cururu-Poço no Rio Ayari
Philipp von Luetzelburg, alemão da Baviera (1880-1948) foi um famoso coletor de plantas (diga-se bio-pirata), que morou no Brasil desde 1911. Em 1922, ele retorna à Alemanha, Munique com 47 caixas cheias de material vegetal (incluindo samambaias, bryophytes, algas marinhas, frutas e amostras de madeira) além de uma variedade de conservas de espécimes não botânicas, principalmente insetos. Ele acumulou cerca de 28.000 espécimes desde 1911 e empregou muitos taxonomista na Alemanha para documentar as plantas e acervo que ele levara do Brasil. As listas de suas coleções de plantas foram publicadas por R. Pilger em Notizblatt des Königl. botanischen Gartens und Museums zu Berlin sob o título "Plantae Lützelburgianae Brasilienses". Em 1928, Philipp von Luetzelburg viaja pra região do Rio Negro a pedido do Marechal Rondon para documentar a fronteira. Eu penso que ele certamente deve ter lido o famoso livro de Koch-Grünberg, pois ele também faz questão de procurar e fotografar o já famoso tuxaua Mandu.
Então quem foi o fotografo do retrato do tuxaua Mandu que se encontra no acervo da Província Franciscana de Santo Antônio no Recife? Minha hipótese é que o fotógrafo franciscano nascido na Alemanha, Thomás Kockmeyer, responsável por um conjunto significativo de fotografias deste acervo, recebeu a fotografia do tuxaua Mandu de Philipp von Luetzelburg, pela semelhança das fotografias. Thomás Kockmeyer teria lido o livro de Koch-Grünberg e certamente conheceu os conterrâneos Curt Nimuendajú e Philipp von Luetzelburg. Pois, até onde sabemos, frei Thomas Kockmeyer jamais viajou pra região do Rio Ayari. Philipp von Luetzelburg deve ter se encontrado com frei Thomás em uma de suas viagens à Salvador ou mesmo ao Recife onde o franciscano tinha residência.
Por fim, sabemos que Ciro Guerra se baseou no livro de Koch-Grünberg para realizar seu filme “O Abraço da Serpente” (2015), aclamado pela crítica e nomeado ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Ademais, para criar o “pajé” personagem central do filme, Guerra buscou inspiração no tuxaua Mandu, uns dos principais colaboradores de Koch-Grünberg durante a sua estadia no Alto Rio Negro.
Cena do filme "O Abraço da Serpente" o viajante alemão olhando o retrato envelhecido do tuxaua/pajé também personagem do filme.
(1) Obrigado Gisela Pauli Caldas por me ajudar encontrar uma excelente edição do livro de Koch-Grünberg, na Biblioteca de Colônia (Köln) com as imagens impressas com qualidade muito boa para escanear e obrigado a Aaron Bailey-Athias por escanear os textos e imagens.
Williamsburg (VA), 15/12/2017
Williamsburg (VA), 15/12/2017
Notas e links
ATHIAS, R. Reconhecimento dos Rios Içana, Ayari e Uaupés, textos linguísticos e Fotografias de Curt Nimuendajú. Rio de Janeiro/Recife, Museu do índio e Editora da UFPE, 2015 - Clique aqui para visualizar parte da publicação:
https://issuu.com/renatoathias/docs/relat__rio_e_fotos_de_c._nimuendaju
Sobre o filme, "O Abraço da Serpente" veja estas resenhas:
https://www.puntolatino.ch/cultura/item/cine-el-abrazo-de-la-serpiente-ciro-guerra,-colombia,-2015.html
https://www.lemonde.fr/festival-de-cannes/article/2016/03/31/el-abrazo-de-la-serpiente-un-fitzcarraldo-vu-du-cote-des-indiens_4634649_766360.html