domingo, 21 de junho de 2020

Higino Vive!

19/06/2020


Nestes tempos de pandemia eu acordo como sempre, sem saber em que dia estou, e nem como será o dia. Logo depois, que eu penso que meu corpo está de novo junto com o meu espírito, eu começo a realizar que estou de fato, nesse mundo novamente. Os meus mestres me disseram um dia, que quando dormimos o nosso espírito se separa de nosso corpo, e que volta quando sentimos que estamos nesse mundo.

Quando tomei consciência do mundo hoje, foi com uma notícia realmente muito, mais muito triste: a partida de meu amigo Higino, de longas datas. Nos conhecemos no Natal de 1974 em Pari-Cachoeira. Naquela época, Pari Cachoeira, era a Capital do país dos Yepá-Masã, Tukano, Tuyuka, Desana, Miriti, Barasana, Hupd’äh, Yohup e outros que tem o grande Rio Tiquié como referência importante.

Mas, a última vez que troquei palavras com Higino foi fevereiro deste ano de pandemia. Eu acabara de visitar o museu dos salesianos na região Turim, na Itália. Lá eu vi uma imensa coleção de objetos retirados da região, ainda no tempo das malocas. Higino estava em Manaus. Trocamos palavras e umas fotografias, onde eu mostrava para ele a riqueza de detalhes dos objetos que eu havia visto, e que estão naquele museu. Ele me dizia, “olha... eu acho que é Tuyuka”. Ele, na ocasião me falou que estava convalescente de uma cirurgia que tinha feito no olho e que estava bem, e esperava um transporte para Gabriel.

No final do ano de 2016, Higino veio ao Recife. Nessa ocasião falamos muito, trocamos muitas palavras, pois ele foi professor na UFPE em turmas do curso Bacharelado em Ciências Sociais e Museologia. Os alunos presentes nas suas aulas ficavam até o fim. Muitas perguntas e muitas conversas de corredor. No final de semana visitamos dois museus, o Museu do Estado de Pernambuco e Instituto Ricardo Brennand. Nossos diálogos foram sobre objetos, coisas e pensamentos Tuyuka sobre o que estávamos vendo. É muito enriquecedor quando visitamos um museu com amigos ameríndios. Já tive essa oportunidade várias vezes. Lembro desses dias com Higino com muito prazer.



Hoje, como disse essa notícia me deixou muito triste. Como sempre eu falo, pois aprendi com os meus mestres, Higino está presente, mas de forma diferente. Pois o espírito dele saiu do corpo, foi para outro lugar. Ou seja, ele passou para o outro lado da vida, onde a dimensão do invisível é parte essencial. Mas, lá onde está, ele sempre estará nos vendo e fazendo aquelas piadas que ele gostava de fazer. Higino vive nas profundezas de nossos corações. Meus sentimentos de pesar a toda sua família e, evidentemente a todos que fazem parte da FOIRN, e um número sem fim de professores indígenas que foram seus alunos e a educação escolar indígenas no alto Rio Negro que ele ajudou a criar nessas últimas décadas. Higino vive! (19/05/2020)







terça-feira, 12 de maio de 2020

Os Desenhos que falam do tempo das Malocas, Feliciano vive!




Por Renato Athias (12 de maio de 2020)

Desenho de Feliciano Lana, Cuidando do Corpo, 2014.

Hoje (12 de maio de 2020) a notícia do falecimento de Feliciano Lana, do clã  Kêhíriponã, Desana de São João do Rio Tiquié, me deixou profundamente triste. Mais um que se vai no tempo do Coronavirus. As minhas memórias de Feliciano começaram a passar na minha mente, desde época em que eu o conheci, em novembro de 1974, em Pari-Cachoeira, até a última vez que nos vimos em fevereiro de 2019, em Gabriel. Estávamos conversando na porta da sede da FUNAI em Gabriel. 

Conversamos como sempre lembrando a época que encontrei com toda a família Lana, em São João, sobre o que cada um fazia. Parecia que não havia passado o tempo. Uma sensação de estar sempre no mesmo tempo. A conversa girava em torno dos desenhos, de sua produção e sua relação como um tempo mitológico. Cada desenho mostra uma narrativa. O texto dessa narrativa era construído pela vivência do cotidiano de Feliciano, de sua relação com as pessoas, com vida e de suas lembranças do tempo das malocas. 

Nos encontramos em muitos lugares, em São João, em Pari, em Gabriel, em Manaus, sempre conversando sobre o tempo das histórias, pois me interessava saber como ele construía seus personagens dos desenhos. Eu achava incrível a maneira como ele passava da tradição oral para uma linguagem gráfica. E, acho que era esse sempre o nosso tema de conversa. Em 2001, acho que durante a festa do padroeiro de são Gabriel da Cachoeira, encontrei Feliciano, e eu estava nesse dia acompanhado de um jornalista do The Spiegel, da Alemanha, que estava fazendo uma matéria sobre a região(1). Conversamos muito e a curiosidade de Matthias Matussek, o jornalista ia muito longe, e sempre querendo saber sobre as palavras transformadoras existentes em toda essa região.

No dia seguinte, Matthias novamente me pediu para irmos juntos visitar o Feliciano, e lá fomos. Encontramos Feliciano em meio a sua produção artística e nos desenhos, experimentando os lápis cores em pastel que eu havia trazido para ele. Novamente, essas conversas sobre os desenhos, na realidade, não eram sobre os desenhos. Era sobre um conhecimento profundo sobre a vida, que as narrativas mitológicas interpretam o universo. Esse mundo que ele havia conhecido através de seu tio, Umusin Pãrõkumu (Firmiano), um importante Kumu e Baiá dos Kêhíriporã, mundialmente famoso, através do livro de seu primo Luiz Lana, "Antes o mundo não existia - A mitologia heróica dos Desana"(2) que dá início a um estilo literário, muito próprio dessa região, bem descrito por Berta Ribeiro na introdução do volume. Todos esses conhecimentos estão nos seus desenhos. Evidentemente, essas narrativas que vão além do desenho tocaram profundamente o jornalista alemão. 

Para mim, até hoje quando eu vejo seus desenhos, eu escuto a sua voz me falando, contando os Kihti, as narrativas, tal como seu pai lhe falava, e eu lhe respondendo “uhum... tota ni” e, ele continuava a sua fala. Muitas das vezes incompreendidas, mas contendo um profundo saber acumulado de séculos. Tenho dez desenhos que ele fez para uma publicação que estou organizando. E ele me narrou todos os dez episódios dessa série. Eu quando quero escutá-lo vou olhar os seus desenhos.


(1) Matéria publicada no The Spiegel: 
http://magazin.spiegel.de/EpubDelivery/spiegel/pdf/18759120

(2) Antes o mundo não existia: a mitologia heroica dos indios Desana / Umusin Panlon Kumu, Tolaman Kenhiri. Organização e Introducao de Berta G. Ribeiro. São Paulo: Livraria Cultura, 1980


São Gabriel, 2019, a ultima vez que nos vimos.





Quais as lições da Nova Zelândia o sobre o COVID-19 para a região do Rio Negro, no Amazonas.

Por Renato Athias, 10 de maio de 2020, no tempo do Coronavirus!

São Gabriel da Cachoeira, Bairro Centro. Foto: Portal A Crítica, 31.8.2019

Nestas semanas tenho acompanhado de perto a situação dos povos indígenas no Brasil com relação ao enfretamento ao COVID-19, não está fácil, é uma situação por demais desafiadora, porque essa situação e muito nova para todos nós, e a região do Rio Negro merece uma atenção privilegiada, por ser uma região multiétnica, como grande movimentação de pessoas subindo e descendo os rios para o único centro urbano, e sede municipal, que é São Gabriel da Cachoeira, com imensas fronteiras para controlar.

Sábado, dia 9 de maio, a Associação Saúde Sem Limites (SSL), da qual faço parte, realizou uma vídeo conferência com representantes da FOIRN em São Gabriel justamente buscando saber qual seria a demanda mais urgente, para articular apoiadores. Pois, todos nós estamos realmente preocupados. Os dados estatísticos, vocês podem achar nos boletins oficiais. Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) lança todos os dias um boletim onde ele consolida os dados para uma ampla divulgação nas redes sociais. E, a notícia principal é desde quinta-feira passada, que a estrutura médica de São Gabriel não suportará a responder positivamente, se começar aumentar os casos contaminação, da forma como estão subindo, os casos de Covid-19 confirmados na sede do município.

Até o presente momento, os representantes indígenas fizeram um bom trabalho, articulando com as instituições federais, para que nessa região do Rio Negro, a sociedade civil tivesse o apoio formal e oficial para garantir as barreiras sanitárias necessárias. Nesse sentido, as demandas dos povos indígenas foram todas atendidas pelo Ministério Público que legitima de fato, uma ampla adesão das instituições municipais oficiais às barreiras sanitárias, pois, inclusive, os grandes focos de aglomeração, em são Gabriel são de fato as instituições bancárias, a qual nós tememos pois estes focos são importante lugares de contaminação.

São Gabriel da Cachoeira, Bairro da Fortaleza, no fundo a esquerda o monte da Boa Esperança. 

Até agora, não sabemos exatamente o que Exército está fazendo, certamente estão com um pé atrás como grande parte do Governo Bolsonaro, que não acreditam que o isolamento físico seja, de fato, a medida correta, como uma das estratégias importantes para o combate ao COVID-19. O contingente militar é, na realidade um dos focos importantes e não temos informações concretas o que está sendo feito com relação a tropa estacionada naquele município. Na região, o discurso geral é de apoiar as iniciativas da população, mas na prática não se consegue visualizar exatamente onde está sendo esse apoio, nem com a tropa e, nem com relação aos Pelotões de Fronteiras existentes em toda a área. O boletim de ontem, 9 de maio, publicado pelo Marivelton, Presidente da FOIRN, nas redes sociais informava de que o 
número de casos confirmados em São Gabriel da Cachoeira chegou nesse sábado a 79, com 5 óbitos confirmados. Vejam bem, foram 25 casos a mais só entre sexta-feira e sábado. Existem ainda 186 pessoas sendo monitoradas”.
As equipes do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (DSEI) estão, na realidade, limitadas ao entorno de São Gabriel, uma vez que não estão viajando para as áreas indígenas, e se caso subirem para visitas aos povoados, estas deveriam ser testadas antes da viagem. E, aí vem uma outra questão: Não sabemos exatamente a quantidade de testes que existem no DSEI para toda a região. Talvez seja realmente um trabalho importante e fazer com que o transporte fluvial para as aldeias, tanto para o alto Rio Negro e Uaupés e o baixo Rio Negro possa ser de fato interrompido, como os representantes indígenas tem solicitado. Até o presente momento as estratégias tomadas pelo comité de enfrentamento estão bem pensadas. As demandas urgentes são todas para manter uma estrutura precária no único hospital existente em São Gabriel mais ou menos nessa ordem: oxigênio, respiradores hospitalares, testes do Covid-19, recurso humanos para trabalho, rádios fonias para pronta instalação nas áreas remotas, apoio para a as ações de informação.

Mas, eu gostaria de colocar a seguinte questão. Quais as lições que a Nova Zelândia tem a ensinar para a região do Rio Negro? Um país multiétnico, uma ilha de 268.000 quilômetros quadrados, portanto com dificuldades imensas de controlar as fronteiras, com uma população ao redor de 5 milhões de pessoas. Pois bem, desde a entrada do Covid-19 na Nova Zelândia, em fevereiro passado, e os dados oficiais de hoje (10 de maio), nos informam que o total e casos de contaminação pelo COVID-19 foi de 1.497 pessoas com um total de mortes de 21 pessoas, e os casos recuperados foram de 1.386. Esses dados nos fazem pensar em quais prioridades devemos rever em nossas listas para conter a contaminação de pessoas na região do Rio Negro. O que o governo de Nova Zelândia fez para obter esse sucesso?

Pelo que eu entendi, lá, naquele país, a pandemia não foi “politizada” pelos governantes, pelos partidos e nem por setores da sociedade. Todos unidos contra o mesmo objetivo. Aconteceu investimento maciço em campanhas educativas, formativas e de sensibilização, em todos os níveis, em todas as línguas, e em todos os setores da sociedade. Então, vendo esse caso específico, aposto que as demandas de ajuda financeira para a região do Rio Negro, deveriam reforçar o que os povos indígenas já começaram a fazer e que precisa de apoio para que essa campanha possa ser cada vez mais interiorizada para todos os povoados, aldeias e sítios.

Portanto, a lista de prioridades deveria ser invertida. Os recursos arrecadados deveriam ser investidos em: 1) Ampliar as campanhas de educação, formação e sensibilização sobre a epidemia com medidas para conter o contágio em todas as principais línguas, e usando todos os veículos de comunicação disponível; 2) Apostar em fechar todas as fronteiras como com um controle rígido da movimentação de pessoas; 3) Ampliar os recursos para as rádios fonia e a cobertura de WIFI (via satélite) nas principais áreas do município de maior concentração; 4) Material hospitalar necessário para atendimento. Essa é a lição da Nova Zelândia.





domingo, 9 de fevereiro de 2020

Os Missionários, os Índios e o Diabo


OS MISSIONÁRIOS, OS INDIOS E O DIABO

Por Renato Athias


A relação dos povos indígenas das Américas com os missionários vem desde o século XV, portanto, uma história de mais de quinhentos anos. Muito já se escreveu sobre isso, e parece que está mais atual que nunca, pelo menos no Brasil, quando o Governo busca contratar missionários para um cargo público no âmbito de uma ação governamental. No mínimo é desconhecer a história.


Capa do livro de Bartolomeu de las Casas


Talvez o livro mais impressionante sobre essa relação dos índios com a colonização tenha sido o livro do Frei Dominicano Bartolomeu de las Casas, Bispo do Chiapas: “La Brevísima relación de la destrucción de las Indias”, livro publicado em 1552. Bartolomeu de las Casas foi principal defensor dos povos indígenas das Américas no século XVI. Ele denunciou os primeiros resultados da colonização europeia no Novo Mundo. Logo após, o Papa Paulo III ter declarado que os indígenas são possuidores de almas, portanto, eles são gentes, pessoas humanas, com uma racionalidade própria.

Outro livro importante para se conhecer essa história da relação dos missionários, conquistadores com os povos indígenas nas Américas é o livro Primer nueva corónica y buen gobierno de  Felipe Guamán Poma de Ayala, (1534-1615). Ele é um cronista ameríndio, Inca, da época do vice-reinado do Peru. Ele dedicou-se a descrever essa relação em um dos livros mais originais da historiografia da literatura mundial. O livro contém 1.180 páginas e 397 gravuras, ele mostra a visão, a perspectiva indígena do mundo andino e, sobretudo,  permite reconstruir aspectos da sociedade peruana em grandes detalhes após a conquista, ilustrando a história e a genealogia dos incas com textos em castelhano do século XVI e em Quechua.

Capa do livro de Poma de Ayala



Em 2 de junho de 1537, com a “Bula Sublimis Deus”, o Papa Paulo III, proibiu que os espanhóis e portugueses escravizassem os índios. Ele defendeu a racionalidade deles, como pessoas humanas e, declarou que eles tinham direito à total liberdade, a dispor de seus bens, e a abraçar a fé, que deveria ser pregada pacificamente, evitando todo tipo de crueldade.  Esta Bula papal, na realidade, não impediu que os portugueses e espanhóis promovessem, com o apoio direto dos missionários, a carnificina em “guerras justas” e “guerras de resgates” contra os povos indígenas em toda a extensão da Amazônia.  São José da Barra do Rio Negro (Manaus) nascerá nessa confluência das guerras.


A bula papal é conhecida por diferentes nomes: Sublimis Deus, Unigenitus e Veritas ipsa. Neste documento, o Papa Paulo III assume a racionalidade dos indígenas como pessoas humanas e declara ter direito à liberdade, dispor de seus bens, evitando todo tipo de crueldade.

Os missionários sempre estiveram presente em toda a história da Amazônia, podemos contar inúmeros fatos dessa relação histórica dos índios com os missionários. Porém, aqui gostaria de lembrar um deles que me parece ser emblemático dessa relação e, sobretudo, me faz lembrar o que estou vivendo nesses dias aqui na Itália, onde estou, no momento em que escrevo este texto. Trata-se do Franciscano Frei Illuminato Coppi, que em 1884 esteve no país dos Tariana, na região de Iauareté, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), que aliás, eu conheço muito bem. Lá ele retirou da aldeia indígena uma das máscaras utilizadas para a realização de festas ritualizadas. Tais máscaras, mulheres não podem ver. Ele pegou a máscara, mostrou as mulheres e cometeu um sacrilégio. Os lideres indígenas vendo isso, resolveram expulsar o missionário. O missionário chegou de volta na Itália com a tal máscara que se encontra até hoje no Museu Pigorini, em Roma. Ele escreveu um diário onde inventa estórias de rituais que os indígenas fazem com o diabo. Esse diário ficou conhecido de muitos missionários. Durante anos os missionários forçaram os indígenas a queimarem suas casas comunais onde realizam suas festas. Muitos desses objetos retirados dessas casas comunais hoje se encontram em museus missionários, e em outros museus nacionais na Europa. Pois, em nome do diabo se tem provocado as mudanças mais profundas na organização social desses povos, que vivem em todos os rios da grande bacia hidrográfica do Alto Rio Negro. Veja-se, por exemplo, os depoimentos e textos produzidos, onde a figura do diabo é associada a tudo que é tradicional e cultural dos povos indígenas desta região (em alguns lugares até os dias de hoje). Se faz necessário indicar que na língua Nheengatu, a língua da colonização, o termo Jurupari é traduzido por diabo.

Capa do diário de Illuminato Coppi


Há poucas semanas atrás, eu visitei museus dos missionários que expõem objetos da cultura dos povos indígenas com os quais trabalho e venho trabalhando nesses últimos 47 anos. Nesses mesmos dias em que estava fazendo essas visitas (relacionada, ao meu projeto de pesquisa antropológica sobre objetos etnográficos), neste museu, na Itália eu vi com muita emoção a quantidade de objetos rituais dos povos indígenas guardados em gavetas na reserva e, em exposições nos museus. Evidentemente estes objetos mostram a ação dos missionários que trouxeram para fora dos territórios indígenas um cem número de coisas que foram deixadas pelos ancestrais mitológicos aos povos indígenas e interpretadas pelos missionários como sendo objetos do diabo.


Capa da última edição do livro de João Barbosa Rodrigues

"Poranduba Amazonense" o livro de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi recentemente reeditado em uma bela edição. Ele viveu em Manaus quando ele criou o Museu Botânico da cidade, no final do século XIX (1874). Era um conhecedor profundo da língua Nheengatu, e neste livro ele edita, em uma edição bilíngue, em uma tradução primorosa, nheengatu e português 54 mitos dos povos desta região. Neste livro ele faz uma crítica aos missionários que insistiam em ver o diabo nas manifestações culturais indígenas. Vale a pena ler o maravilhoso texto de João Barbosa Rodrigues, onde ele descreve sobre a tradução do termo Jurupari como sendo diabo, e, onde ele mostra como os missionários insistiram nesse erro linguístico e mitológico.

Foi durante essa visita, nos museus que eu acompanhei as notícias veiculadas pela imprensa brasileira, de que a FUNAI colocaria na Coordenação dos Índios Isolados um missionário para dar as orientações das ações e colocar em prática o que em anos vem sendo organizado pela FUNAI em defesa dessas populações.  Sete semanas antes, ainda em meados de novembro de 2019, nós antropólogos acompanhamos o desmonte  que a FUNAI vem fazendo, desde que esse governo assumiu, com relação aos estudos para as demarcações terras indígenas. A presidência da FUNAI afastou todos os antropólogos, pesquisadores que há décadas vem trabalhando nesses processos fundiários de terras indígenas, super bem organizados desde os anos noventa, com toda a lisura que os processos jurídicos oferecem para dar legitimidade às terras indígenas, com vários anos em uso pela FUNAI, regulamentado pelo Decreto nº 1775 de 1996, podem ver aqui essa legislação (clique em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-53). Por que afastar os antropólogos? Claro que há um interesse em prejudicar os processos de estudos em andamento.

A história do Brasil que os índios viveram em suas peles, em um passado, ainda estão presente nas narrativas indígenas, não ensina absolutamente nada aos governantes de hoje no Brasil. Ao contrário eles vem repetindo os mesmos erros que vem promovendo à 500 anos de preconceitos com relação aos povos indígenas. Com o Capitão Jair Bolsonaro,  não é diferente. Ele repete o que o General Ismarth Araújo de Oliveira, então presidente da FUNAI, fez em 1976, quando se tratou de mudar os quadros da FUNAI pelos missionários, organizou em Manaus o famoso “Encontro FUNAI-Missões” onde discutiu com missionários, sem a presença de antropólogos, por que o General já havia expulsados todos os que trabalham na FUNAI, e nesse evento, acordou como os missionários deveriam atuar. A FUNAI autoriza a presença do Instituto Linguístico de Verão (S.I.L.) no Brasil, nas diversas terras indígenas, bem como a continuidade das missões católicas e evangélicas em atuação tais como a MEVA e a New Tribes Mission, cujo Sr. Edward Luz é o representante máximo aqui no Brasil. Sem reuniões, sem elaboração de protocolos, os missionários, principalmente evangélicos, vão ser contratados, com recursos públicos, para atuar de maneira mais ostensiva juntos aos povos indígenas. O Projeto é claro, colocar na máquina pública os missionários evangélicos. Aliás como eles já vem atuando há alguns anos através de associações evangélicas brasileiras, mas recebendo orientações das Missões Transculturais, organização internacional que faz a coleta dos recursos financeiros necessários para que as organizações missionárias brasileiras, ligadas principalmente ao CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) possam ter a sua atuação direta na administração pública. Onde sem dúvida, as manifestações culturais indígenas serão novamente associadas a um diabo que está ainda bem presente nas pregações e sermões desse missionários fundamentalistas e proselitistas.

A Nota da APIB sobre essa situação é clara quando diz: “Sabemos que hoje existem grupos religiosos proselististas e evangélicos aliados aos criminosos grupos ruralistas que planejam se apoderar do que resta dos nossos territórios. Temos a certeza que a atividade dos missionários proselitistas caminha junto com a destruição de nossos últimos territórios. Na nossa perspectiva, a nomeação desse missionário para atuar junto aos nossos parentes isolados significa mais um ataque deste governo racista e preconceituoso contra nossos povos, nossas famílias. Temos o direito de pensar e viver diferente da sociedade não-indígena. Temos o direito a nossos territórios! Não vamos deixar que tais igrejas e esses fundamentalistas religiosos façam com nossos parentes isolados o que fizeram com nossas famílias no passado!” (Nota da APIB: http://apib.info/2020/01/31/nota-de-repudio-contra-a-nomeacao-de-missionario-da-mntb-para-o-setor-de-isolados-na-funai/),

Turim, 29/12/2019