OS MISSIONÁRIOS, OS INDIOS E O DIABO
Por Renato Athias
A relação dos povos indígenas das Américas com os missionários vem desde o século XV, portanto, uma história de mais de quinhentos anos. Muito já se escreveu sobre isso, e parece que está mais atual que nunca, pelo menos no Brasil, quando o Governo busca contratar missionários para um cargo público no âmbito de uma ação governamental. No mínimo é desconhecer a história.
Capa do livro de Bartolomeu de las Casas
Talvez o livro mais impressionante sobre essa relação dos índios com
a colonização tenha sido o livro do Frei Dominicano Bartolomeu de las Casas,
Bispo do Chiapas: “La Brevísima relación
de la destrucción de las Indias”, livro publicado em 1552. Bartolomeu de las Casas
foi principal defensor dos povos indígenas das Américas no século XVI. Ele denunciou os
primeiros resultados da colonização europeia no Novo Mundo. Logo após, o
Papa Paulo III ter declarado que os indígenas são possuidores de almas, portanto,
eles são gentes, pessoas humanas, com uma racionalidade própria.
Outro livro importante para se conhecer essa
história da relação dos missionários, conquistadores com os povos indígenas nas
Américas é o livro Primer nueva corónica
y buen gobierno de Felipe Guamán
Poma de Ayala, (1534-1615). Ele é um cronista ameríndio, Inca, da época do
vice-reinado do Peru. Ele dedicou-se a descrever essa relação em um dos livros mais originais da
historiografia da literatura mundial. O livro contém 1.180 páginas e 397
gravuras, ele mostra a visão, a perspectiva indígena do mundo andino e, sobretudo, permite
reconstruir aspectos da sociedade peruana em grandes detalhes após a conquista,
ilustrando a história e a genealogia dos incas com textos em castelhano do
século XVI e em Quechua.
Capa do livro de Poma de Ayala
Em 2 de junho de 1537, com a “Bula
Sublimis Deus”, o Papa Paulo III, proibiu que os espanhóis e portugueses
escravizassem os índios. Ele defendeu a racionalidade deles, como pessoas
humanas e, declarou que eles tinham direito à total liberdade, a dispor de seus
bens, e a abraçar a fé, que deveria ser pregada pacificamente, evitando todo
tipo de crueldade. Esta Bula papal, na realidade, não impediu
que os portugueses e espanhóis promovessem, com o apoio direto dos
missionários, a carnificina em “guerras justas” e “guerras de resgates” contra
os povos indígenas em toda a extensão da Amazônia. São José da Barra do Rio Negro (Manaus) nascerá nessa
confluência das guerras.
A bula papal é conhecida por diferentes nomes: Sublimis Deus, Unigenitus e Veritas ipsa. Neste documento, o Papa Paulo III assume a racionalidade dos indígenas como pessoas humanas e declara ter direito à liberdade, dispor de seus bens, evitando todo tipo de crueldade.
Os missionários sempre estiveram presente em
toda a história da Amazônia, podemos contar inúmeros fatos dessa relação
histórica dos índios com os missionários. Porém, aqui gostaria de lembrar um deles que me parece ser emblemático dessa relação e, sobretudo, me faz lembrar
o que estou vivendo nesses dias aqui na Itália, onde estou, no momento em que
escrevo este texto. Trata-se do Franciscano Frei Illuminato Coppi, que em 1884 esteve no país dos Tariana, na região de Iauareté, no município de São Gabriel
da Cachoeira (AM), que aliás, eu conheço muito bem. Lá ele retirou da aldeia
indígena uma das máscaras utilizadas para a realização de festas ritualizadas.
Tais máscaras, mulheres não podem ver. Ele pegou a máscara, mostrou as
mulheres e cometeu um sacrilégio. Os lideres indígenas vendo isso, resolveram expulsar o missionário. O
missionário chegou de volta na Itália com a tal máscara que se encontra até hoje no
Museu Pigorini, em Roma. Ele escreveu um diário onde inventa estórias de
rituais que os indígenas fazem com o diabo. Esse diário ficou conhecido de
muitos missionários. Durante anos os missionários forçaram os indígenas a
queimarem suas casas comunais onde realizam suas festas. Muitos desses objetos
retirados dessas casas comunais hoje se encontram em museus missionários, e em outros museus nacionais na Europa. Pois, em nome do diabo se tem provocado as
mudanças mais profundas na organização social desses povos, que vivem em todos
os rios da grande bacia hidrográfica do Alto Rio Negro. Veja-se, por exemplo,
os depoimentos e textos produzidos, onde a figura do diabo é associada a tudo
que é tradicional e cultural dos povos indígenas desta região (em alguns
lugares até os dias de hoje). Se faz necessário indicar que na língua
Nheengatu, a língua da colonização, o termo Jurupari é traduzido por diabo.
Capa do diário de Illuminato Coppi
Há poucas semanas atrás, eu visitei museus dos missionários que expõem objetos
da cultura dos povos indígenas com os quais trabalho e venho trabalhando nesses
últimos 47 anos. Nesses mesmos dias em que estava fazendo essas visitas
(relacionada, ao meu projeto de pesquisa antropológica sobre objetos
etnográficos), neste museu, na Itália eu vi com muita emoção a quantidade de
objetos rituais dos povos indígenas guardados em gavetas na reserva e, em
exposições nos museus. Evidentemente estes objetos mostram a ação dos
missionários que trouxeram para fora dos territórios indígenas um cem número de
coisas que foram deixadas pelos ancestrais mitológicos aos povos indígenas e
interpretadas pelos missionários como sendo objetos do diabo.
Capa da última edição do livro de João Barbosa Rodrigues
"Poranduba Amazonense" o livro de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi recentemente reeditado
em uma bela edição. Ele viveu em Manaus quando ele criou o Museu Botânico da cidade, no final do século XIX (1874). Era um conhecedor profundo da língua Nheengatu, e neste livro ele edita, em uma edição bilíngue, em uma tradução primorosa, nheengatu e português 54
mitos dos povos desta região. Neste livro ele faz uma crítica aos
missionários que insistiam em ver o diabo nas manifestações culturais indígenas. Vale a pena ler o maravilhoso texto de João Barbosa
Rodrigues, onde ele descreve sobre a tradução do termo Jurupari como sendo diabo,
e, onde ele mostra como os missionários insistiram nesse erro linguístico e
mitológico.
Foi durante essa visita, nos museus que eu acompanhei as notícias
veiculadas pela imprensa brasileira, de que a FUNAI colocaria na Coordenação
dos Índios Isolados um missionário para dar as orientações das ações e colocar
em prática o que em anos vem sendo organizado pela FUNAI em defesa dessas
populações. Sete semanas antes, ainda em
meados de novembro de 2019, nós antropólogos acompanhamos o desmonte que a FUNAI vem fazendo, desde que esse
governo assumiu, com relação aos estudos para as demarcações terras indígenas. A presidência da FUNAI afastou todos os antropólogos, pesquisadores que há décadas vem trabalhando nesses processos
fundiários de terras indígenas, super bem organizados desde os anos noventa,
com toda a lisura que os processos jurídicos oferecem para dar legitimidade às
terras indígenas, com vários anos em uso pela FUNAI, regulamentado pelo Decreto
nº 1775 de 1996, podem ver aqui essa legislação (clique em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-53).
Por que afastar os antropólogos? Claro que há um interesse em prejudicar os processos de estudos em andamento.
A história do Brasil que os índios viveram em suas peles, em um
passado, ainda estão presente nas narrativas indígenas, não ensina absolutamente nada
aos governantes de hoje no Brasil. Ao contrário eles vem repetindo os mesmos
erros que vem promovendo à 500 anos de preconceitos com
relação aos povos indígenas. Com o Capitão Jair Bolsonaro, não é diferente. Ele repete o que o General
Ismarth Araújo de Oliveira, então presidente da FUNAI, fez em 1976, quando se tratou de mudar os quadros
da FUNAI pelos missionários, organizou em Manaus o famoso “Encontro
FUNAI-Missões” onde discutiu com missionários, sem a presença de antropólogos,
por que o General já havia expulsados todos os que trabalham na FUNAI, e nesse
evento, acordou como os missionários deveriam atuar. A FUNAI autoriza a
presença do Instituto Linguístico de Verão (S.I.L.) no Brasil, nas diversas
terras indígenas, bem como a continuidade das missões católicas e evangélicas
em atuação tais como a MEVA e a New Tribes Mission, cujo Sr. Edward Luz é o
representante máximo aqui no Brasil. Sem reuniões, sem elaboração de
protocolos, os missionários, principalmente evangélicos, vão ser contratados,
com recursos públicos, para atuar de maneira mais ostensiva juntos aos povos
indígenas. O Projeto é claro, colocar na máquina pública os missionários
evangélicos. Aliás como eles já vem atuando há alguns anos através de associações evangélicas brasileiras, mas recebendo orientações das Missões
Transculturais, organização internacional que faz a coleta dos recursos
financeiros necessários para que as organizações missionárias brasileiras,
ligadas principalmente ao CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes
Evangélicos Indígenas) possam ter a sua atuação direta na administração
pública. Onde sem dúvida, as manifestações culturais indígenas serão novamente
associadas a um diabo que está ainda bem presente nas pregações e sermões desse
missionários fundamentalistas e proselitistas.
A Nota da APIB sobre essa situação é clara quando diz: “Sabemos que hoje existem grupos religiosos
proselististas e evangélicos aliados aos criminosos grupos ruralistas que
planejam se apoderar do que resta dos nossos territórios. Temos a certeza que a
atividade dos missionários proselitistas caminha junto com a destruição de
nossos últimos territórios. Na nossa perspectiva, a nomeação desse missionário
para atuar junto aos nossos parentes isolados significa mais um ataque deste
governo racista e preconceituoso contra nossos povos, nossas famílias. Temos o
direito de pensar e viver diferente da sociedade não-indígena. Temos o direito
a nossos territórios! Não vamos deixar que tais igrejas e esses
fundamentalistas religiosos façam com nossos parentes isolados o que fizeram
com nossas famílias no passado!” (Nota da APIB: http://apib.info/2020/01/31/nota-de-repudio-contra-a-nomeacao-de-missionario-da-mntb-para-o-setor-de-isolados-na-funai/),
Turim, 29/12/2019