domingo, 9 de fevereiro de 2020

Os Missionários, os Índios e o Diabo


OS MISSIONÁRIOS, OS INDIOS E O DIABO

Por Renato Athias


A relação dos povos indígenas das Américas com os missionários vem desde o século XV, portanto, uma história de mais de quinhentos anos. Muito já se escreveu sobre isso, e parece que está mais atual que nunca, pelo menos no Brasil, quando o Governo busca contratar missionários para um cargo público no âmbito de uma ação governamental. No mínimo é desconhecer a história.


Capa do livro de Bartolomeu de las Casas


Talvez o livro mais impressionante sobre essa relação dos índios com a colonização tenha sido o livro do Frei Dominicano Bartolomeu de las Casas, Bispo do Chiapas: “La Brevísima relación de la destrucción de las Indias”, livro publicado em 1552. Bartolomeu de las Casas foi principal defensor dos povos indígenas das Américas no século XVI. Ele denunciou os primeiros resultados da colonização europeia no Novo Mundo. Logo após, o Papa Paulo III ter declarado que os indígenas são possuidores de almas, portanto, eles são gentes, pessoas humanas, com uma racionalidade própria.

Outro livro importante para se conhecer essa história da relação dos missionários, conquistadores com os povos indígenas nas Américas é o livro Primer nueva corónica y buen gobierno de  Felipe Guamán Poma de Ayala, (1534-1615). Ele é um cronista ameríndio, Inca, da época do vice-reinado do Peru. Ele dedicou-se a descrever essa relação em um dos livros mais originais da historiografia da literatura mundial. O livro contém 1.180 páginas e 397 gravuras, ele mostra a visão, a perspectiva indígena do mundo andino e, sobretudo,  permite reconstruir aspectos da sociedade peruana em grandes detalhes após a conquista, ilustrando a história e a genealogia dos incas com textos em castelhano do século XVI e em Quechua.

Capa do livro de Poma de Ayala



Em 2 de junho de 1537, com a “Bula Sublimis Deus”, o Papa Paulo III, proibiu que os espanhóis e portugueses escravizassem os índios. Ele defendeu a racionalidade deles, como pessoas humanas e, declarou que eles tinham direito à total liberdade, a dispor de seus bens, e a abraçar a fé, que deveria ser pregada pacificamente, evitando todo tipo de crueldade.  Esta Bula papal, na realidade, não impediu que os portugueses e espanhóis promovessem, com o apoio direto dos missionários, a carnificina em “guerras justas” e “guerras de resgates” contra os povos indígenas em toda a extensão da Amazônia.  São José da Barra do Rio Negro (Manaus) nascerá nessa confluência das guerras.


A bula papal é conhecida por diferentes nomes: Sublimis Deus, Unigenitus e Veritas ipsa. Neste documento, o Papa Paulo III assume a racionalidade dos indígenas como pessoas humanas e declara ter direito à liberdade, dispor de seus bens, evitando todo tipo de crueldade.

Os missionários sempre estiveram presente em toda a história da Amazônia, podemos contar inúmeros fatos dessa relação histórica dos índios com os missionários. Porém, aqui gostaria de lembrar um deles que me parece ser emblemático dessa relação e, sobretudo, me faz lembrar o que estou vivendo nesses dias aqui na Itália, onde estou, no momento em que escrevo este texto. Trata-se do Franciscano Frei Illuminato Coppi, que em 1884 esteve no país dos Tariana, na região de Iauareté, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), que aliás, eu conheço muito bem. Lá ele retirou da aldeia indígena uma das máscaras utilizadas para a realização de festas ritualizadas. Tais máscaras, mulheres não podem ver. Ele pegou a máscara, mostrou as mulheres e cometeu um sacrilégio. Os lideres indígenas vendo isso, resolveram expulsar o missionário. O missionário chegou de volta na Itália com a tal máscara que se encontra até hoje no Museu Pigorini, em Roma. Ele escreveu um diário onde inventa estórias de rituais que os indígenas fazem com o diabo. Esse diário ficou conhecido de muitos missionários. Durante anos os missionários forçaram os indígenas a queimarem suas casas comunais onde realizam suas festas. Muitos desses objetos retirados dessas casas comunais hoje se encontram em museus missionários, e em outros museus nacionais na Europa. Pois, em nome do diabo se tem provocado as mudanças mais profundas na organização social desses povos, que vivem em todos os rios da grande bacia hidrográfica do Alto Rio Negro. Veja-se, por exemplo, os depoimentos e textos produzidos, onde a figura do diabo é associada a tudo que é tradicional e cultural dos povos indígenas desta região (em alguns lugares até os dias de hoje). Se faz necessário indicar que na língua Nheengatu, a língua da colonização, o termo Jurupari é traduzido por diabo.

Capa do diário de Illuminato Coppi


Há poucas semanas atrás, eu visitei museus dos missionários que expõem objetos da cultura dos povos indígenas com os quais trabalho e venho trabalhando nesses últimos 47 anos. Nesses mesmos dias em que estava fazendo essas visitas (relacionada, ao meu projeto de pesquisa antropológica sobre objetos etnográficos), neste museu, na Itália eu vi com muita emoção a quantidade de objetos rituais dos povos indígenas guardados em gavetas na reserva e, em exposições nos museus. Evidentemente estes objetos mostram a ação dos missionários que trouxeram para fora dos territórios indígenas um cem número de coisas que foram deixadas pelos ancestrais mitológicos aos povos indígenas e interpretadas pelos missionários como sendo objetos do diabo.


Capa da última edição do livro de João Barbosa Rodrigues

"Poranduba Amazonense" o livro de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi recentemente reeditado em uma bela edição. Ele viveu em Manaus quando ele criou o Museu Botânico da cidade, no final do século XIX (1874). Era um conhecedor profundo da língua Nheengatu, e neste livro ele edita, em uma edição bilíngue, em uma tradução primorosa, nheengatu e português 54 mitos dos povos desta região. Neste livro ele faz uma crítica aos missionários que insistiam em ver o diabo nas manifestações culturais indígenas. Vale a pena ler o maravilhoso texto de João Barbosa Rodrigues, onde ele descreve sobre a tradução do termo Jurupari como sendo diabo, e, onde ele mostra como os missionários insistiram nesse erro linguístico e mitológico.

Foi durante essa visita, nos museus que eu acompanhei as notícias veiculadas pela imprensa brasileira, de que a FUNAI colocaria na Coordenação dos Índios Isolados um missionário para dar as orientações das ações e colocar em prática o que em anos vem sendo organizado pela FUNAI em defesa dessas populações.  Sete semanas antes, ainda em meados de novembro de 2019, nós antropólogos acompanhamos o desmonte  que a FUNAI vem fazendo, desde que esse governo assumiu, com relação aos estudos para as demarcações terras indígenas. A presidência da FUNAI afastou todos os antropólogos, pesquisadores que há décadas vem trabalhando nesses processos fundiários de terras indígenas, super bem organizados desde os anos noventa, com toda a lisura que os processos jurídicos oferecem para dar legitimidade às terras indígenas, com vários anos em uso pela FUNAI, regulamentado pelo Decreto nº 1775 de 1996, podem ver aqui essa legislação (clique em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-53). Por que afastar os antropólogos? Claro que há um interesse em prejudicar os processos de estudos em andamento.

A história do Brasil que os índios viveram em suas peles, em um passado, ainda estão presente nas narrativas indígenas, não ensina absolutamente nada aos governantes de hoje no Brasil. Ao contrário eles vem repetindo os mesmos erros que vem promovendo à 500 anos de preconceitos com relação aos povos indígenas. Com o Capitão Jair Bolsonaro,  não é diferente. Ele repete o que o General Ismarth Araújo de Oliveira, então presidente da FUNAI, fez em 1976, quando se tratou de mudar os quadros da FUNAI pelos missionários, organizou em Manaus o famoso “Encontro FUNAI-Missões” onde discutiu com missionários, sem a presença de antropólogos, por que o General já havia expulsados todos os que trabalham na FUNAI, e nesse evento, acordou como os missionários deveriam atuar. A FUNAI autoriza a presença do Instituto Linguístico de Verão (S.I.L.) no Brasil, nas diversas terras indígenas, bem como a continuidade das missões católicas e evangélicas em atuação tais como a MEVA e a New Tribes Mission, cujo Sr. Edward Luz é o representante máximo aqui no Brasil. Sem reuniões, sem elaboração de protocolos, os missionários, principalmente evangélicos, vão ser contratados, com recursos públicos, para atuar de maneira mais ostensiva juntos aos povos indígenas. O Projeto é claro, colocar na máquina pública os missionários evangélicos. Aliás como eles já vem atuando há alguns anos através de associações evangélicas brasileiras, mas recebendo orientações das Missões Transculturais, organização internacional que faz a coleta dos recursos financeiros necessários para que as organizações missionárias brasileiras, ligadas principalmente ao CONPLEI (Conselho Nacional de Pastores e Líderes Evangélicos Indígenas) possam ter a sua atuação direta na administração pública. Onde sem dúvida, as manifestações culturais indígenas serão novamente associadas a um diabo que está ainda bem presente nas pregações e sermões desse missionários fundamentalistas e proselitistas.

A Nota da APIB sobre essa situação é clara quando diz: “Sabemos que hoje existem grupos religiosos proselististas e evangélicos aliados aos criminosos grupos ruralistas que planejam se apoderar do que resta dos nossos territórios. Temos a certeza que a atividade dos missionários proselitistas caminha junto com a destruição de nossos últimos territórios. Na nossa perspectiva, a nomeação desse missionário para atuar junto aos nossos parentes isolados significa mais um ataque deste governo racista e preconceituoso contra nossos povos, nossas famílias. Temos o direito de pensar e viver diferente da sociedade não-indígena. Temos o direito a nossos territórios! Não vamos deixar que tais igrejas e esses fundamentalistas religiosos façam com nossos parentes isolados o que fizeram com nossas famílias no passado!” (Nota da APIB: http://apib.info/2020/01/31/nota-de-repudio-contra-a-nomeacao-de-missionario-da-mntb-para-o-setor-de-isolados-na-funai/),

Turim, 29/12/2019