terça-feira, 12 de maio de 2020

Os Desenhos que falam do tempo das Malocas, Feliciano vive!




Por Renato Athias (12 de maio de 2020)

Desenho de Feliciano Lana, Cuidando do Corpo, 2014.

Hoje (12 de maio de 2020) a notícia do falecimento de Feliciano Lana, do clã  Kêhíriponã, Desana de São João do Rio Tiquié, me deixou profundamente triste. Mais um que se vai no tempo do Coronavirus. As minhas memórias de Feliciano começaram a passar na minha mente, desde época em que eu o conheci, em novembro de 1974, em Pari-Cachoeira, até a última vez que nos vimos em fevereiro de 2019, em Gabriel. Estávamos conversando na porta da sede da FUNAI em Gabriel. 

Conversamos como sempre lembrando a época que encontrei com toda a família Lana, em São João, sobre o que cada um fazia. Parecia que não havia passado o tempo. Uma sensação de estar sempre no mesmo tempo. A conversa girava em torno dos desenhos, de sua produção e sua relação como um tempo mitológico. Cada desenho mostra uma narrativa. O texto dessa narrativa era construído pela vivência do cotidiano de Feliciano, de sua relação com as pessoas, com vida e de suas lembranças do tempo das malocas. 

Nos encontramos em muitos lugares, em São João, em Pari, em Gabriel, em Manaus, sempre conversando sobre o tempo das histórias, pois me interessava saber como ele construía seus personagens dos desenhos. Eu achava incrível a maneira como ele passava da tradição oral para uma linguagem gráfica. E, acho que era esse sempre o nosso tema de conversa. Em 2001, acho que durante a festa do padroeiro de são Gabriel da Cachoeira, encontrei Feliciano, e eu estava nesse dia acompanhado de um jornalista do The Spiegel, da Alemanha, que estava fazendo uma matéria sobre a região(1). Conversamos muito e a curiosidade de Matthias Matussek, o jornalista ia muito longe, e sempre querendo saber sobre as palavras transformadoras existentes em toda essa região.

No dia seguinte, Matthias novamente me pediu para irmos juntos visitar o Feliciano, e lá fomos. Encontramos Feliciano em meio a sua produção artística e nos desenhos, experimentando os lápis cores em pastel que eu havia trazido para ele. Novamente, essas conversas sobre os desenhos, na realidade, não eram sobre os desenhos. Era sobre um conhecimento profundo sobre a vida, que as narrativas mitológicas interpretam o universo. Esse mundo que ele havia conhecido através de seu tio, Umusin Pãrõkumu (Firmiano), um importante Kumu e Baiá dos Kêhíriporã, mundialmente famoso, através do livro de seu primo Luiz Lana, "Antes o mundo não existia - A mitologia heróica dos Desana"(2) que dá início a um estilo literário, muito próprio dessa região, bem descrito por Berta Ribeiro na introdução do volume. Todos esses conhecimentos estão nos seus desenhos. Evidentemente, essas narrativas que vão além do desenho tocaram profundamente o jornalista alemão. 

Para mim, até hoje quando eu vejo seus desenhos, eu escuto a sua voz me falando, contando os Kihti, as narrativas, tal como seu pai lhe falava, e eu lhe respondendo “uhum... tota ni” e, ele continuava a sua fala. Muitas das vezes incompreendidas, mas contendo um profundo saber acumulado de séculos. Tenho dez desenhos que ele fez para uma publicação que estou organizando. E ele me narrou todos os dez episódios dessa série. Eu quando quero escutá-lo vou olhar os seus desenhos.


(1) Matéria publicada no The Spiegel: 
http://magazin.spiegel.de/EpubDelivery/spiegel/pdf/18759120

(2) Antes o mundo não existia: a mitologia heroica dos indios Desana / Umusin Panlon Kumu, Tolaman Kenhiri. Organização e Introducao de Berta G. Ribeiro. São Paulo: Livraria Cultura, 1980


São Gabriel, 2019, a ultima vez que nos vimos.





Quais as lições da Nova Zelândia o sobre o COVID-19 para a região do Rio Negro, no Amazonas.

Por Renato Athias, 10 de maio de 2020, no tempo do Coronavirus!

São Gabriel da Cachoeira, Bairro Centro. Foto: Portal A Crítica, 31.8.2019

Nestas semanas tenho acompanhado de perto a situação dos povos indígenas no Brasil com relação ao enfretamento ao COVID-19, não está fácil, é uma situação por demais desafiadora, porque essa situação e muito nova para todos nós, e a região do Rio Negro merece uma atenção privilegiada, por ser uma região multiétnica, como grande movimentação de pessoas subindo e descendo os rios para o único centro urbano, e sede municipal, que é São Gabriel da Cachoeira, com imensas fronteiras para controlar.

Sábado, dia 9 de maio, a Associação Saúde Sem Limites (SSL), da qual faço parte, realizou uma vídeo conferência com representantes da FOIRN em São Gabriel justamente buscando saber qual seria a demanda mais urgente, para articular apoiadores. Pois, todos nós estamos realmente preocupados. Os dados estatísticos, vocês podem achar nos boletins oficiais. Marivelton Baré, presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) lança todos os dias um boletim onde ele consolida os dados para uma ampla divulgação nas redes sociais. E, a notícia principal é desde quinta-feira passada, que a estrutura médica de São Gabriel não suportará a responder positivamente, se começar aumentar os casos contaminação, da forma como estão subindo, os casos de Covid-19 confirmados na sede do município.

Até o presente momento, os representantes indígenas fizeram um bom trabalho, articulando com as instituições federais, para que nessa região do Rio Negro, a sociedade civil tivesse o apoio formal e oficial para garantir as barreiras sanitárias necessárias. Nesse sentido, as demandas dos povos indígenas foram todas atendidas pelo Ministério Público que legitima de fato, uma ampla adesão das instituições municipais oficiais às barreiras sanitárias, pois, inclusive, os grandes focos de aglomeração, em são Gabriel são de fato as instituições bancárias, a qual nós tememos pois estes focos são importante lugares de contaminação.

São Gabriel da Cachoeira, Bairro da Fortaleza, no fundo a esquerda o monte da Boa Esperança. 

Até agora, não sabemos exatamente o que Exército está fazendo, certamente estão com um pé atrás como grande parte do Governo Bolsonaro, que não acreditam que o isolamento físico seja, de fato, a medida correta, como uma das estratégias importantes para o combate ao COVID-19. O contingente militar é, na realidade um dos focos importantes e não temos informações concretas o que está sendo feito com relação a tropa estacionada naquele município. Na região, o discurso geral é de apoiar as iniciativas da população, mas na prática não se consegue visualizar exatamente onde está sendo esse apoio, nem com a tropa e, nem com relação aos Pelotões de Fronteiras existentes em toda a área. O boletim de ontem, 9 de maio, publicado pelo Marivelton, Presidente da FOIRN, nas redes sociais informava de que o 
número de casos confirmados em São Gabriel da Cachoeira chegou nesse sábado a 79, com 5 óbitos confirmados. Vejam bem, foram 25 casos a mais só entre sexta-feira e sábado. Existem ainda 186 pessoas sendo monitoradas”.
As equipes do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (DSEI) estão, na realidade, limitadas ao entorno de São Gabriel, uma vez que não estão viajando para as áreas indígenas, e se caso subirem para visitas aos povoados, estas deveriam ser testadas antes da viagem. E, aí vem uma outra questão: Não sabemos exatamente a quantidade de testes que existem no DSEI para toda a região. Talvez seja realmente um trabalho importante e fazer com que o transporte fluvial para as aldeias, tanto para o alto Rio Negro e Uaupés e o baixo Rio Negro possa ser de fato interrompido, como os representantes indígenas tem solicitado. Até o presente momento as estratégias tomadas pelo comité de enfrentamento estão bem pensadas. As demandas urgentes são todas para manter uma estrutura precária no único hospital existente em São Gabriel mais ou menos nessa ordem: oxigênio, respiradores hospitalares, testes do Covid-19, recurso humanos para trabalho, rádios fonias para pronta instalação nas áreas remotas, apoio para a as ações de informação.

Mas, eu gostaria de colocar a seguinte questão. Quais as lições que a Nova Zelândia tem a ensinar para a região do Rio Negro? Um país multiétnico, uma ilha de 268.000 quilômetros quadrados, portanto com dificuldades imensas de controlar as fronteiras, com uma população ao redor de 5 milhões de pessoas. Pois bem, desde a entrada do Covid-19 na Nova Zelândia, em fevereiro passado, e os dados oficiais de hoje (10 de maio), nos informam que o total e casos de contaminação pelo COVID-19 foi de 1.497 pessoas com um total de mortes de 21 pessoas, e os casos recuperados foram de 1.386. Esses dados nos fazem pensar em quais prioridades devemos rever em nossas listas para conter a contaminação de pessoas na região do Rio Negro. O que o governo de Nova Zelândia fez para obter esse sucesso?

Pelo que eu entendi, lá, naquele país, a pandemia não foi “politizada” pelos governantes, pelos partidos e nem por setores da sociedade. Todos unidos contra o mesmo objetivo. Aconteceu investimento maciço em campanhas educativas, formativas e de sensibilização, em todos os níveis, em todas as línguas, e em todos os setores da sociedade. Então, vendo esse caso específico, aposto que as demandas de ajuda financeira para a região do Rio Negro, deveriam reforçar o que os povos indígenas já começaram a fazer e que precisa de apoio para que essa campanha possa ser cada vez mais interiorizada para todos os povoados, aldeias e sítios.

Portanto, a lista de prioridades deveria ser invertida. Os recursos arrecadados deveriam ser investidos em: 1) Ampliar as campanhas de educação, formação e sensibilização sobre a epidemia com medidas para conter o contágio em todas as principais línguas, e usando todos os veículos de comunicação disponível; 2) Apostar em fechar todas as fronteiras como com um controle rígido da movimentação de pessoas; 3) Ampliar os recursos para as rádios fonia e a cobertura de WIFI (via satélite) nas principais áreas do município de maior concentração; 4) Material hospitalar necessário para atendimento. Essa é a lição da Nova Zelândia.